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sem nome

Bebíamos chá na casa do Pepe, segundo ele, estar sem álcool em casa naquela hora da manhã aliviava o peso de ter enchido a cara até aquele momento - uma vida inteira de porres. 


Era um fim de mundo, o mais legal que irei lembrar: ligo pra Sue com medo das próximas quatro horas se tornarem apenas mais quatro horas. O mundo acabando deveria ter alguma aventura, nem que fosse beber na sarjeta. Porém, beber.
- Tu sabe aquele bar lá perto do centro, indo pro Morro? 
- Sim, mas não lembro como chego...
- Temos um caminho certo?
- Certo.
- Então temos tudo o que precisamos. Passo aí em 23 minutos.

A estrada estava movimentada. Todos realmente estavam saindo pra rodovia naquele momento, provavelmente seguindo o mesmo intuito: estar em algum lugar que não ali, em casa. Penso agora que fui ligar pra ela mais com intenção de estar. Incrível como alguns seres são benéficos para nós. Bebemos muito mais do que apenas o líquido em suas companhias. Bebemos na verdade o estado de espírito e a experiência obtida, junto com as satisfações e anseios, um misto de empatia e simplicidade. Não acho isso mais tão fácil, de alguma forma vai tudo ficando confuso. 80kh. As luzes dos faróis estavam baixos, geralmente um carro ou outro me cegava nas curvas, devido a luz deles. O asfalto fazia parte já do conhecido cenário: curvas, árvores, casas pequenas de madeira, placas indicando a entrada à cidade ou de bairros. Em seguida vinha as quatro pistas e semáforos na zona interna da cidade de Sue. Aguardo em um deles. Tento colocar uma música, mas estava vencida por aquele aparelho grotesco e com vida própria. Chego em fronte do apartamento de Sue, ela já estava à minha espera. Seguimos para a noite.

O bar Mullini ficava aos fundos de um grande terreno, propício para fazer muitos happy hours no verão, infelizmente não era um dia tão quente, parecia uma casa. Antes de chegar lá porém, fizemos algumas voltas desnecessárias pontualmente divertidas pela conversa fácil com Sue. Chegamos. Estaciono na grama meio úmida, desastrada que sou, consigo descer do carro e logo enfiar o pé no barro, logo abaixo daquelas folhinhas verdes, a tal da terra. Sem muito caso fico arrastando os pés.  Entramos. A Sue procura alguns amigos e logo os encontra. Conheço então o Pi, um daqueles caras altos que tu olha e pensa "gente, eu sou muito mais baixinha do que imaginei". Ele estava com o Pepe, que nos ignorou por completo até terminar um dos traços no papel. Penso comigo mesma que me meti numa fria, "festa estranha, com gente esquisita." salvo a Sue! Que logo consegue me deixar a vontade a ponto de mandar a merda aqueles dois. Lembro pouco das conversas, sei que estávamos todos realmente apreensivos com o fim daquilo tudo, se desse certo estaríamos bem, se desse errado estaríamos literalmente mortos - e nem por isso piores. Introduções iniciais, pessoas mais a vontade, Serramalte (é amor!) na mesa. Estava tudo indo bem. Um amigo de Sue avisa que estava indo pra lá. Mais gente amontoada se o arraio do Grande Marvin* viesse.

Pedimos batatas? Pedimos. O bar era essencialmente verde. Tipo um bar irlandês, ou um mexicano, ou qualquer bar de interior mais arrumado. Tu entrava e parecia uma casa, e quando estava sentado lá ainda parecia uma casa. A vantagem de ter um bar em uma casa é que é verídico o fato de parecer estar em casa. E realmente parecia uma casa cheio de amigos estranhos, o que é bom, e que tu sentia conhecer há anos, mesmo que não. Tinha algum espelho lá, não lembro exatamente o lugar mas ele me incomodou. Espelhos e reflexos me deixavam mais no passado do que agora, escrevendo sobre. Sei que o álcool estava me deixando falante, e falante demais. O tal do amigo já havia chegado "causando", com piadas internas de praxe, me deixando mais desconectada e mais retardada do que antes. O problema não era ele, óbvio. Era eu que estava querendo meu retardo.

E o mundo não acabou. Passamos ilesos mais uma vez. E para o próximo bar!
- Temos que ir no Sprandel.
- O que é isso?
- Tu não conhece o "schhprandell"?
- Eu não! Não sou daqui!
- De onde tu é, afinal?
- De Lugar Algum.

O amigo da Sue pegou carona com a gente. Sentou no banco traseiro. Parecia espaçoso. Os outros meninos seguiram na frente, iria segui-los, não conhecia o lugar do tal do Sprandel. Eu estava bem. Nenhuma curva passei dos 60km/h. Deveria ter curvas. Lembro que pisei no freio de vez quando vi o carro em frente dar sinal pra estacionar.
- Tu tá bem hein? - era o tal amigo da Sue, Rico.
- Sempre. - mesmo nunca, pensei.
Eles se davam bem, tinham uma afinidade linda, era visível para todos. Desta vez ao descer, era o asfalto seco que pisei. Descemos num bar já cheio dos melhores dos melhores da noite: senhores com barbas por fazer, de vários tipos e tamanhos, com o cheiro acre de bar sujo pelo próprio álcool impregnado na madeira do balcão.
- Tu não conhece as histórias do Sprandel?
- Não né.
- Toda noite acontece uma.

Sentamos no lado de fora, num muro ao lado do estabelecimento. Em ordem: Rico, eu, Sue, Pi. Em fronte: Pepe e que surge dois caras a nossa esquerda, aparentemente amigos dos meninos:
- Vocês tem uma cara de que estão cheirados. - fala um deles.
- Nós? - Dei risada, sentia o oposto.
- Bah guria, tu me lembra aquela guria lá de LC, que trabalhava no Tio.
- Capaz? Será que não sou eu mesma? - dei corda. Incrivelmente esta frase já virava jargão aos demais.
- Não sei, tá curto e preto, o dela era vermelho.
- Então, as pessoas mudam.
- Tu está com cara de quem usou drogas.
Incrível isso, as pessoas esquecem  que a cerveja, apesar de líquido precioso, é uma delas.
- Uso sempre que possível - mais corda, ambiguidade ás vezes é meu forte.
Não duraram muito, nos entretemos nas nossas conversas. Lembro que o Pepe ou alguém, falou de ir pra casa dele. Eu geralmente não ia na casa das pessoas do nada. Mas eu não queria nada mesmo. Olho pra Sue e pergunto silenciosamente se ela topa. Como sempre, vem aquele sorrisão gigante que acompanha o brilho do olhar (e que ressalto aqui não ser devido ao álcool) dizendo: sim! Vamos!

Então que me encontro numa sala, em uma casa gigante: perguntando pro Pepe sobre o que é ser independente. Ele responde muito convencido do que acredita ser: "eu trabalho, eu vivo independente na casa dos meus pais. Começarei a estudar e sustento meus vícios." A conversa tinha iniciado devido ao assunto da minha mudança pra Poa. Ninguém, salvo raros, entendia minha partida. Era importante para mim esclarecer: a independência financeira, espiritual, familiar, ou qualquer que seja, sempre vem acompanhada do não-cômodo. Seria muito mais fácil existir ao lado dos pais, com eles pagando comida, estudos e tudo mais. Se consegue emprego fácil com algumas indicações. É mais cômodo aceitar o que já esta pré-determinado pelos outros e sempre tem muitas pessoas ao teu redor querendo te proteger. E virá sempre alguém que gosta de ti e disposto a evitar as tuas quedas, quaisquer que sejam. Infelizmente gosto de ter o meu ponto de vista e viver protegida numa bolha coletiva não é o meu feitio. Do não-cômodo: fazer e projetar coisas na tua vida com teu esforço próprio. Se aplica a quase tudo...
- Quem lava as tuas cuecas?
- Minha mãe.
Dei uma risada. Muita risada. Era óbvio que talvez ele fosse independente deles pra viver do lado de fora do lar e que se sinta independente em relação a coisas simples como lavar a própria roupa. E digo ele, mas na real é assim com quase todos. Comodidade era uma coisa que me sufocava naquele momento, no sentido integral da palavra. Precisava sair dali e me virar sozinha. Não só de onde estava, com aquelas pessoas incríveis, mas dali onde morava. Estava um céu limpo, sigo para o jardim sem maiores explicações. Sento nas pedras que rodeavam a grama em posição quase fetal. Olho pra cima: estrelas. Fico observando um tempo, procurando enxergar mais e mais. Fecho os olhos, sinto o vento, coloco as mãos na grama, sinto vontade de voar. Não para escapar, mas para sentir aquela noite. Quando volto, topo com o Rico, lembro de termos nos abraçados muito forte, ou quase. Senti que precisava fazer isso mais vezes, mesmo sendo uma travada total ao tato. Sem tato, sem toques, sem apegos.


O Tucho aparece ali para pegar o Rico, dois irmãos mais controversos que conheci e mesmo assim se completam de formas únicas, enquanto um é contido o outro é desmedido.  Acabamos bebendo chá o resto da noite e seguimos nossos rumos. E damos risadas. Como é bom rir mesmo por nada. Na despedida, dispenso sugestões de caminhos, somente eu e Sue novamente naquele veículo. Sue, direita ou esquerda? Foda-se, esquerda.

Pausa: eu estava acostumada a pegar sempre o caminho torto. Tá aí que em alguns momentos devemos nos desapegar dos velhos costumes. E hoje, vejo como em alguns outros momentos falo com tanta convicção "direita!".

Eu lembrava daquelas ruas, das curvas, as casas pareciam as mesmas de antes. Falsa noite, falsas percepções, estávamos perdidas, completamente perdidas. Sue olha pra mim, imagino que preocupada: "Tu sabe por onde viemos?" Respondo calmamente que há vários caminhos e apenas uma volta. E o bom senso me disse pra voltar. Adivinha? A esquerda não era a mão correta. Os destros que estavam certos. Logo chegamos na rodovia. Nunca ri tanto por me perder. E aí que começa o ápice (palavra que me foge quando quero) da noite: a amizade é gradativa, a empatia existe, mas somente a convivência nos faz mais próximos. Essas pequenas coisas nos fizeram criar laços, tipo confiança. Talvez até não seja a palavra certa, mas é a que me veio primeiro. Depois, Sue querida, coloque outra no lugar, preencha estes laços como sentimos.

Sentíamos fome, e eu, vindo o sono, precisava de um bom café. Paramos no próximo posto de (naquela altura da manhã) "inconveniências". Pagamos pelos cafés o fomos beber dentro do carro, estava frio. Sue parece ter ficado quieta, não sei se foi depois do café ou antes talvez. Sei que ficou quieta com aquele ar de quem quer falar e não consegue. O medo forte que sentimos ao tentarmos falar algo que nunca fora dito antes. Te dá uma sensação estranha no estômago, tu fica ou trêmula ou arquejante, cada um tem seus tiques e ela ficou muda, mais pálida talvez, e depois de eu já estar na estrada contamos nossas histórias mais hilariantes. Tudo passou muito rápido, a cada palavra dita  e olhar de compreensão fazia os segundos serem mais rápidos do que eram, quando nos demos por conta, talvez pela ligação dos meus pais, ou talvez pelo sol raiando, estávamos em fronte ao apartamento dela, morrendo de frio, com o carro já estacionado:
- Por que estamos aqui fora passando frio? Podíamos ter entrado.
- Não, logo tenho que ir, está tarde, ou muito cedo e tenho que voltar pra casa.
- Tá bom... - e continuávamos as conversas e não paramos.

Este foi o momento mais decisivo pra nós Sue? Quando percebemos que podíamos passar horas e horas conversando e que nada alteraria nossa amizade? Nem mesmo a falta de assunto ou mesmo o sono sempre ali? Ou a recente descoberta que podíamos falar, e falar sem medo das percepções que viriam de nós mesmas? E Sue, como conseguimos estes detalhes serem assim, tão importantes? Um dia será que estaremos velhinhas contando as gotas de chuva pela janela e rindo pelas coisas belas que vivemos, coisas simples como sair numa noite que deveria ter acabado para e sempre e que continuamos a repeti-la de diferentes formas em diferentes momentos e que nunca irá nos enjoar?  Será, Sue?




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