E o destempero castigava suas rodas, desmanchava seu ferro junto ao tempo. Ela se movia com certa ajuda, apesar de ter total autonomia no desempenho. Eram 39 anos de vivência. Eram 39 anos e minutos pelos ares. Paravam cansados pelas sarjetas e pelos meio fios. Ela nunca fora de andar só, sempre fazia parte de alguém e, volta e meia, seguia em grupos. Ela era camuflável no seu lar, fazia parte do ambiente na rua.
Ele a bajulava, a acariciava, por vezes, nem sempre funcionava. Devido ao destempero inicial ela o machucava, quase sem razão. Os motivos não levavam a lugar algum, talvez aos hospitais de plantão, e nem suas desculpas de si mesma a faziam mudar de lugar, ela queria andar, sabia disso, mas sabia também que necessitava dele. Então ficava imersa em si na espera dele, jurando nunca mais o fazer sofrer e se culpava.
Ela não era única, via as demais o tempo inteiro. Desfilavam a dar gargalhadas em suas formas. Elas tinham mais sons, algumas mais barulhos e outras mais silenciosas que ela. Ela se glorificava ao saber que ela era sua favorita. A favorita deveria ter benefícios, mas apenas via mais lugares. E isso a fez mudar. Quanto mais andavam juntos mais ela o amava, por poder ser ela a escolhida a conhecer tudo aquilo. Os ciúmes se vão quando ele a escolhe. Ela se diz nunca ter ficado enraivecida antes, caso fosse.
Ela recebe sua força de maneira sublime, arranca de si o melhor e traz pra ele a melhor sensação disponível: liberdade. Então aí que ele se declara, dizendo nunca mais a deixar, que ela era incrível, que jamais pensou encontrar outra melhor. Até fala aos amigos. Ela sabe que é temporário, mas finge acreditar. Nessa relação não houve nunca uma cobrança, talvez um pouco de orgulho, às vezes feridas expostas junto de fraturas irreversíveis. Eles se amam. E foram felizes nestes 39 anos.
Aí que ela se vê só.
Ele partiu para ser o pó.
Ela fica, herdeira do próximo a se declarar.
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