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Vitrines - Parte DOIS

Estou parada no meio de muitas lojas, refletindo e sendo refletida pelas vitrines. A rua é ampla, passam muitas pessoas aqui. Me encontro neste cenário, onde as pessoas em sua maioria te vêem, porém não te enxergam. Estava exposta aos olhares, às críticas, as suas atenções e seus interesses. E eu me modificava? Bom, no momento estou parada, em pé, dentro de uma das lojas. Eu vivo aqui faz algum tempo e tenho percebido que elas parecem estar a salvo do outro lado. Aqui dentro, a transparência que me tem logo em frente me julga a todo momento, alguns olhos me vêem despercebidos, outras pessoas desejam meu corpo, outras me olham e desejam o que possuo por cima dos meus ombros ou simplesmente o que minha cabeça contém. Parada do outro lado eu via como eles se movimentavam, quais eram suas intenções e isso causava um certo tipo de padrão. Eu fazia parte do cenário agora e me via refletida pelas projeções que eles criavam em mim. E de tudo que imaginava, eles ficavam satisfeitos, ao menos por um período.
Mas eu nunca agia.
Imaginava...

Alguém ou alguma coisa me olha lá: hoje, tarde de sol, um reflexo do outro lado, ele bate no meu vidro e o vejo sorrindo diretamente pra mim, ele diz então: "tu não cansa de ver todo este movimento repetitivo?" e eu muda durante muitos anos engasgo, não letras e n cosgo nm af, esrvre...



...............



...



...


..


.


algumas letras, respondo.

Com certa... dificuldade.


Me isolei pela transparência. A transparência me faz livre, me dava vantagens caso quisesse me relacionar com outros iguais a mim. "e tu já encontrou alguém?" e eu obviamente percebo minha solidão.

Aqui, agora reflito: sempre! Sempre há algo para se achar semelhante... Aí que ele me cantou algo parecido com isso:

"Escondida nas janelas, atrás
Pelas fechaduras, nas sacadas,
atrás das portas.
Pelas ruas atrás de personagens.
Pelos muros atrás de segurança. 
Atrás de um vidro, 
Atrás de transparência." 

Era um som rouco que vinha da sua garganta, acompanhado pela sua gaita de boca eu segui e naquele instante ele me teve sua. Me convenceu de algo que até então implicitamente já sabia ter de fazer. Coloquei algumas roupas em uma bolsa próxima e me fui fazer o verso real: procurar a transparência pelo outro lado da vitrine. Cansada de ficar exposta me fui para a liberdade das ruas próximas. Desci as escadarias carregando minha bagagem de mão e no peito o vento infindo que me possuía: quero sentir os padrões. 

Todas as frestas eu me pus a olhar: a primeira foi uma senhora olhando televisão, a segunda do próximo prédio vi um banheiro derramando água na pia até o ralo, a terceira de um elevador transparente passando pelos andares rapidamente e pessoas andavam sistematicamente nos seus mundos sem perceber o barulho que ele fazia ao puxar as correntes subindo e subindo e subindo. O quarto prédio continha um chafariz: e dali de qualquer ponto de vista que o olhava as transfigurações eram totais do outro lado. Nada parecia para mim o completo ou o transparente, apenas mais tipos de padrões, diferentes dos que via todos os dias. 

Passei alguns meses, um dois ou três, vai saber ao certo? Talvez anos... Sei que ao terminar em um bar, olhando o balcão cheio de belas taças, reluzentes, não havia brilho suficiente para as pessoas que ali estavam. Estávamos todos fadados a sermos meros comerciantes, boêmios, consumidores das dores alheias que nos sustentavam e que nos guiavam e que não nos construíam, meramente serviam para algumas discussões frívolas e repetitivas. Nada seria eu capaz de construir ali fora. Eu estava do lado de fora da minha transparência, tinha saído a procura dos padrões que encontro sempre em mim. E descobri então que todos os cantos que olhava eu projetava, assim como antes eu era a causa. Havia perdido minha Ilha, para afundar no mar do esquecimento eterno e do consumo de outras pessoas. Via as vitrines e as imagina como elas queriam. Me afundei nos mares de bolhas alheios, me deixei levar pelos padrões sintéticos da mídia, usufrui os prazeres enlatados. Não era mais uma manequim, nem tampouco a mesma que sempre achei que fosse. Era apenas mais uma presa na vitrine gigante dos sonhos que não acontecem e do imaginário coletivo que vivemos.

Eu não era nada além de mais uma na multidão que imaginou o bater do vidro achando que fosse algo especial e que, na realidade, era a demência de estar comigo mesma. Iniciou então minha loucura. A fase três do fim do que sou, mais uma etiqueta... completamente sem valor.

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